É aqui que aconteceu a chacina”, diz uma pessoa que estava me levando para conhecer o bairro do Benfica, em Fortaleza, onde fica a Universidade Federal do Ceará. Eu não disse nada, mas um dia antes passei de carro por ali e o taxista, que já tinha me mostrado a gigantesca estátua de Nossa Senhora de Fátima e informado que a orla da praia de Iracema era incrível, me apresentou a Praça da Gentilândia e falou do massacre como se fosse um ponto turístico.
Em março do ano passado, o segundo mês mais letal de 2018 no estado, com a praça lotada de gente, três pessoas passaram de carro atirando e mataram três pessoas. Em outros dois pontos perto dali, mais outras quatro mortes. Uma das calçadas da Gentilândia, que antes ficava repleta de mesas, cadeiras e jovens, nunca mais foi ocupada. As investigações apontaram que o crime foi um revide da facção local GDE (Guardiões do Estado) contra o CV (Comando Vermelho), facção surgida no Rio e hoje com abrangência nacional, após uma série de três chacinas ocorridas em janeiro: Maranguape, Cajazeiras e Itapagé.
Praça da Gentilândia um dos locais da chacina de março de 2018, que ganhou fama na cidade.
Os anos de 2017 e 2018 foram marcados por uma explosão de homicídios: foram quase 10 mil mortes violentas, além dos 382 mortos pela polícia, que não entram na conta dos homicídios para a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social cearense porque “mortes decorrentes de intervenção policial não são consideradas como intencionais, pois possuem excludente de ilicitude”.
Não à toa o governo do Ceará tem comemorado, mês a mês desde o início do ano, a redução das mortes: o primeiro trimestre de 2019 teve 545 homicídios, ou uma morte a cada 4 horas, uma redução de quase 57% na comparação com o mesmo período dos dois anos anteriores, quando uma pessoa foi assassinada a cada 2 horas aproximadamente.
A tendência de redução no número de homicídios é nacional, conforme dados compilados pelo Monitor da Violência, do G1, e pela Folha de S.Paulo, mas em nenhum lugar se mostrou tão forte quanto no Ceará. No primeiro bimestre deste ano, o estado foi o campeão na redução no número de homicídios no Brasil, segundo o G1.
Para entender as causas e consequências da pacificação do Ceará, a Ponte passou uma semana ouvindo as ruas, casas, gabinetes e universidades do estado e constatou que a redução do número de mortes violentas é consequência tanto de uma nova estratégia das facções criminosas, que na virada do ano decretaram uma trégua — anistiando desafetos e dívidas até segunda ordem — e da atuação do Estado, que resolveu focar as políticas de segurança pública não só no combate aos crimes contra o patrimônio (roubos e furtos), como é o mais comum no Brasil, mas também no combate aos homicídios.
Até o final do ano passado, o cenário do crime organizado no Ceará estava dividido entre dois blocos: CV (Comando Vermelho) e FDN (Família do Norte), aliadas entre si contra o PCC (Primeiro Comando da Capital), que mantinha uma aliança com a facção local GDE (Guardiões do Estado), considerada a mais violenta. Em janeiro, conforme noticiado pela Ponte, as quatro facções se uniram em uma onda de de ataques que tomou as ruas contra um inimigo em comum: o Estado.
De um lado, o crime entendeu que garantir o funcionamento do negócio — do contrabando, das drogas, das armas — poderia ser mais vantajoso do que seguir com rixas entre os grupos. De outro, o governo do Ceará assumiu que seu poder de controle e repressão apresentava limites: se o secretário de Administração Penitenciária Mauro Albuquerque conseguiu impor rigor e disciplina nas prisões, promovendo uma verdadeira “limpa” no sistema prisional, retirando mais de 3 mil aparelhos celulares e fechando 98 presídios que apresentavam condições inadequadas, na rua a lógica teria que ser outra.
Os métodos de Mauro Albuquerque têm sido questionados pelo MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), que, em relatório recente após inspeção nas unidades prisionais, apontou uma série de violações de direitos básicos dos presos, casos de agressões e superlotação. A “misturada” dentro do sistema obrigou a rua a se organizar. A Ponte apurou que territórios faccionados continuam dominados, mesmo com a presença da Polícia Militar. Um exemplo são as comunidades do Gereba e Babilônia, no Jangurussu, região considerada “ocupada” por conta da instalação de base policial, mas que segue sob as regras de CV e GDE, respectivamente. Há uma cooperação do crime. Nas operações policiais desde o ano passado, não são raros os casos em que criminosos passam por território rival como rota de fuga. A regra é que não podem ficar no local, mas, se passarem, não tem problema. Isso seria inimaginável em 2017, quando as facções estava em guerra declarada dentro e fora dos presídios.
Redução de danos X tolerância zero
Segundo Cláudio Justa, advogado e membro do Copen (Conselho Penitenciário do Ceará), o que aconteceu, ao longo dos anos no sistema prisional, impactou o território. “Você pega o mapa da vulnerabilidade social de Fortaleza e coloca sobre o mapa das facções, eles se encaixam como luva. Eram nas zonas mais vulneráveis que se tinha mão-de-obra para o crime. Um garoto ganhava R$ 300 para fazer o que fosse e topava. Ele era ‘nem nem nem’: nem trabalhava, nem estava na escola, nem tinha acesso à cultura e ainda estava ligado ao consumo de entorpecente. Esse sujeito era preso, esse que não tinha a menor habilidade com o tráfico. Eles vão para o presídio e quando saem estão faccionados já. No Ceará, se convencionou que a dinâmica da criminalidade era a mesma de 20 anos atrás. Não entenderam que a facção se nacionalizou e o Ceará virou rota do mercado de drogas internacional”, explica.
“Acabar com crime organizado é uma ilusão. As ações dentro do sistema prisional foram um elemento importante, porque quando você isola lideranças aqui dentro do estado ou mesmo transfere para presídios federais, isso desarticula as facções. Esses grupos passaram a entender que tinham que partir para um crime organizado não violento, que é o que acontece no mundo inteiro”, afirma, em entrevista à Ponte, o promotor criminal André Clark Cavalcante, coordenador do Caocrim (Centro de Apoio Operacional Criminal, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública) do MP (Ministério Público) do Ceará. “O tráfico, por exemplo, fonte de renda principal desses grupos, não é um crime violento por necessidade. E sempre existiu, sempre deu muito dinheiro e não vai acabar. Não dá para acabar com o crime organizado, mas há como extinguir a violência da ação do crime organizado”, avaliou.
Clark, que assumiu a área na promotoria em janeiro do ano passado, é entusiasta dos rumos tomados pela Segurança Pública no Ceará e atribui muitos dos resultados atuais ao reforço na área da inteligência com destaque para a criação da Supesp, a Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública. “Está acabando o jogo de adivinhação que é muito comum acontecer quando falamos em segurança pública. O resolver com base no sentimento, duas ou três frases e algumas ideias marqueteiras e esdrúxulas”, ponderou o promotor, que cita justamente a ação no Gereba-Babilônia como exitosa. “No Gereba, não foi uma coisa aleatória. Foi a partir de georreferenciamento. Se viu que em números absolutos era a zona mais crítica de homicídios do estado. Parecia que tinham jogado uma bomba ali. O problema estava muito localizado. Quando a polícia entra, os homicídios caem de 20, 30 para 2 no mês seguinte”, destaca.
Conforme diversas fontes ouvidas pela reportagem, o governo cearense adotou uma política mais próxima da “redução de danos” do que da “tolerância zero”, em que a polícia prioriza o combate aos crimes violentos, evitando o enfrentamento com outros delitos, como a ação dos pequenos traficantes de drogas. A consequência é uma melhora na sensação de segurança. “Vamos dizer que estava em 100 o nível de medo, caiu para 70, vai…”, diz um taxista de Fortaleza, ainda um pouco incrédulo em relação ao cenário que vinha se estabelecendo no Ceará nos últimos anos.
Cedo para comemorar
O pesquisador Luiz Fábio Paiva, do LEV (Laboratório de Estudos da Violência) da UFC (Universidade Federal do Ceará), chama de “acomodação” dos movimentos criminais nos territórios o que o estado vive de janeiro até agora. Embora ache natural o governador Camilo Santana (PT) e sua equipe comemorarem os resultados, alerta que o momento é de menos confrontos e não de resolução do problema. “Não é um momento de dizer que esse problema desapareceu como quer fazer crer o governo do Estado por meio das suas ações policiais, essa ideia de que teria vencido as facções. Não, não venceu. As facções continuam atuando, houve um aumento do uso da força. E acho até que o discurso de mérito do governo tem que ser questionado, quando ele diz que venceu o crime. Se era tão fácil, por que demorou tanto? Por que foram necessários 10 mil mortes para você ter uma resolução para esse problema? É muito estranho que ele insista nesse discurso”, critica Luiz Fábio, que também é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC.
Cria da Serrinha, periferia de Fortaleza, Dom Red, militante da Consulta Popular, fala sobre a evolução das ruas e a capacidade de adaptação desses grupos criminosos em territórios como o que ele vive, de predominância do CV. “As ruas continuam da mesma forma que eram, mas com menos violência. E isso não é por conta do Estado. É por conta do fincamento das facções. O poder paralelo fixou bandeira, fixou método, fixou ideais muito subjetivos. O recrutamento continua, o fluxo [de venda de drogas] a todo vapor, o mercado continua, até porque se existe procura tem oferta. Esse mesmo pique continua. Se existe uma sensação de paz é nesse sentido”, explica o militante.
À Ponte, o secretário de Segurança Pública do Ceará, André Costa, afirmou que as reduções de homicídios acontecem há pelo menos 13 meses em Fortaleza (25% de diminuição) e há 12 meses no Ceará (12%) e que as apreensões de drogas aumentaram 400% neste ano em relação ao mesmo período de 2018. “A gente tem aumentado o combate ao tráfico e a seus efeitos, como os roubos. Ninguém está satisfeito, ninguém está achando que essa batalha está vencida. Os grupos criminosos estão presentes no estado e os homicídios acontecem, em sua maioria, por disputa entre eles”. O chefe da pasta garantiu que as pichações em muros que indicavam que aquele território pertence a determinada facção foram apagadas em esforço contínuo e conjunto com a prefeitura de Fortaleza, responsável pela zeladoria da cidade. Contudo, a reportagem verificou em vários pontos, centrais e periféricos, a inscrição dos grupos criminosos.
Na quebrada, tudo igual
Se os homicídios de uma forma geral caíram, por outro lado a polícia do Ceará nunca matou tanto como em janeiro desse ano: foram 28 mortes. E apesar da redução significativa nos dois meses seguintes, no acumulado do trimestre a polícia matou uma pessoa a cada 2 dias. Foi o segundo trimestre mais sangrento desde 2013, ano em que a pasta de Segurança Pública passou a divulgar esses dados. No primeiro trimestre de 2013, por exemplo, a polícia matou uma pessoa a cada 15 dias. A tendência seguiu nos anos seguintes, até aumentar para uma morte a cada 5 dias nos três primeiros meses de 2015 e subir consideravelmente no ano passado, com 65 mortes.
A Ponte questionou a SSPDS-CE e a Polícia Militar sobre o que poderia explicar essa contradição, mas as autoridades não responderam.
Por outro lado, quem vive e conhece a periferia sabe compreender esse movimento: o crime continua forte, a polícia cada vez mais violenta contra os considerados “corpos matáveis” — negro, pobre e periférico — e a população, por sua vez, fica no meio desse fogo cruzado. “Quando não tava a PM, tinha tiroteio. Quando eles chegaram, tem esculacho e tortura”, diz uma moradora da região do Jangurussu, onde ficam Gereba e Babilônia, sobre o processo de ocupação iniciado há mais de um ano em comunidades pobres de Fortaleza a partir do conceito de “polícia de aproximação”.
Para Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência, a letalidade policial elevada demonstra a manutenção de uma política de segurança pública contraditória. “Ela busca controlar a violência por meio de mais violência, gerando dezenas de mortos, sobretudo nas áreas mais pobres. Nessas áreas não morrem apenas sujeitos envolvidos com o crime, mas pessoas pobres que são atingidas por balas perdidas ou confundidas com alvos perseguidos pelas forças policiais. Como a SSPDS-CE não esclarece os efeitos de suas operações, não apresentando dados dos registros de homicídio feitos por policiais, a situação é compreendida como parte de uma ‘guerra’ ao crime”, avalia.
Para ele, os números podem sugerir que os danos colaterais das operações na área da segurança pública estão sendo desconsiderados nesse momento. “Não existe uma preocupação central com a vida das pessoas mais pobres. Elas, infelizmente, não são compreendidas como portadoras de dignidade e direitos de cidadania, não importando para políticos e gestores a proteção delas por meio de políticas públicas de segurança pautada por valores de cidadania”, explica Luiz Fábio.
Para o pesquisador, o Ceará historicamente foi omisso no conflito entre grupos armados envolvidos em mercados ilegais. “E nada me convence de que não continue sendo. Não acho que esses resultados são de uma política: vamos trabalhar para redução de homicídios. Não. É uma politica que segue omissa a esses conflitos. Num cenário que indica uma trégua, o grupo político tenta capitanear politicamente. E é natural celebrar. Você vai dizer que foi você que fez”, explica o professor, que estabelece um paralelo com o que aconteceu no estado de São Paulo, que ostenta há 19 anos quedas recorrentes nos índices de homicídio, chegando ao atual índice de 10,7 mortes a cada 100 mil habitantes, segundo o Anuário do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), comparável ao de países europeus.
“Para o governo do PSDB, o PCC até hoje não existe. Tem gente da Polícia Civil de lá [São Paulo] que diz que foram eles, que foi o DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa) com investigação que reduziu os homicídios”, diverte-se Luiz Fábio. “Tem deputado aqui no Ceará dizendo que foi o Bolsonaro que reduziu os homicídios aqui no estado. Esse homem fez o quê em 100 dias, pelo amor de Deus?”
Quando a rua sente
O militante do Consulta Popular Dom Red destaca que o que está acontecendo agora não é novidade e lembra o período de “pacificação” do Ceará que começou no final de 2015 e perdurou até o começo de 2017, que foi comemorado pela favela que, de um dia para o outro, passou a poder viver tranquilamente, frequentar praças, promover campeonatos de futebol, saraus, etc.
Dom Red é cria da Serrinha, militante do Consulta Popular no Ceará e atualmente tem encabeçado o movimento de saraus em Fortaleza.
Dentro do sistema prisional, o período coincide com a gestão do secretário de Justiça Helio Leitão, que decidiu separar as facções nas unidades prisionais, medida criticada pelo Ministério Público do Estado do Ceará na época e ainda hoje. “[A separação] Fortaleceu a identidade das facções. Eles trabalham muito com símbolos. O conceito deles é militar. Repare: eles usam símbolos, bandeiras, distintivos, armamentos. A base é explorada como qualquer sociedade anônima. Não tem muita diferença das facções para o McDonald’s, por exemplo. Quem ganha dinheiro mesmo é o topo. Tem muito mais a ver com identificação. é algo mais militar do que financeira. A questão financeira é mais um tema para as lideranças. Para a massa, não muito”, avalia o promotor criminal André Clark Cavalcante.
Quando CV e PCC acirram suas disputas no final de 2016 e a paz se quebra, a rua sente, a escalada de violência volta a acontecer, culminando nas quase 10 mil mortes em 2017 e 2018. Quem sai perdendo, mais uma vez, é a quebrada. Agora, em 2019, mais uma vez quem mais se prejudicou foram as comunidades: adolescentes foram cooptados pelas facções para realizar ataques em postos de gasolina, prédios públicos e pontes, por valores que variavam entre R$ 1 mil e R$ 5 mil. E se engana que pensa que é simplesmente o dinheiro que está em jogo. “É o respeito, a moral no território e a chantagem. O garoto precisa fazer aquilo, não tem escolha. Ou faz ou faz”, afirma um morador de região periférica de Fortaleza.
“Nós temos áreas com 35 mil jovens sem perspectiva. Morrer 18, 30, 35 não é problema para o tráfico, que é um violador em vários níveis. Sobre o que estamos vivendo de janeiro para cá, o que tenho a dizer é que a classe média tem sede de vingança, porque o Iphone foi roubado, o Corolla foi levado. Essa sede de vingança da classe média e essa convivência na periferia esgarçada entre quem é e quem não é do trafico gera uma opinião a favor de tudo o que está acontecendo hoje, tanto nas ruas quanto no sistema prisional. Mas eu alerto que a gente não pode concordar em sair de uma violação social para uma violação institucional”, pontua Ana Virginia Porto, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-CE.
Das gangues para as facções
Primeiro foi o funk, que, na esteira do Rio de Janeiro nos anos 90, também chegava com força nas periferias do Ceará. Depois, também impulsionado pela juventude de quebrada, o hip hop começa a ganhar força com a chegada do MH2O (Movimento Hip Hop Organizado do Brasil), que teve penetração em pelo menos 14 estados. “Em Fortaleza, foi o principal gênero musical da juventude na minha época. O funk de 1992 até 2005 era a única forma de lazer da juventude, que se organizava por galera, era o início das gangues. Se você olhar os vídeos, o funk do Rio e o funk do Ceará eram a mesma coisa. Foi tão forte que equipes de som lá do Rio passaram a vier para Fortaleza. Nós tínhamos em média entre 10, 20 mil jovens pulando baile funk de sexta, sábado e domingo”, lembra Dom Red, que hoje tem também trabalhado na idealização de saraus, movimento que tem crescido muito na periferia cearense nos últimos anos.
“Eu fiz parte dessa geração. Eu fazia parte da gangue da Serrinha, meu bairro, que era aliado a outros bairros. Eu tinha 15, 16 anos e comandava mil homens [nesse movimento dos bailes]. Imagina só: periferias totalmente pobres, sem praça, campo de futebol, só favela, juventude desempregada, período do governo de arrocho salarial do FHC. Nessa época não tinha crack e nem cocaína aqui. Era maconha, comprimido, cachaça. A juventude passava o dia fazendo correria para ir pro baile. Por que tô falando isso? Porque quando toda a sociedade que é racista, classista, de sempre ver o pobre como inimigo, eles sempre vão botar a culpa em alguém. Uma hora é funk, outra hora é outra coisa. A gente que se engajou politicamente nesse período com o MH2O pensava: ‘cara, vão acabar com o baile funk: onde é que 20 mil jovens vão se divertir? Se vocês acabarem com isso, essa porra vai voltar pras ruas’. A criminalização dessas iniciativas, o fim dos bailes, faz com que as gangues voltem, vão mudando a função. A gangue da Serrinha que era uniforme, que era o agrupamento de jovens, de massa, ela se subdivide no território, um grupo passa a dominar determinadas ruas. E aí é o processo evolutivo das ruas. Passa a ter esse domínio territorial, as gangues começam a se matar, a ter desavença, passam a se armar e criam identificação, porque as gangues continuam sendo a única válvula de escape para a juventude pobre e periférica”, pondera.
“Eles [governantes] acharam que as gangues de rua eram o problema da violência e investiram em policiamento e repressão, mas ninguém percebeu que aquela juventude precisava de campo de futebol, cultura, praça pública. Eu estou falando de 1996, 1997. E olha que interessante: continua a mesma coisa”, ironiza.
Até bem pouco tempo, a periferia de Fortaleza tinha os chamados “bairros ilhados”. Em um deles, no Morro de Santiago, as crianças só podiam ir à escola até certa idade, porque a aula do ensino fundamental 2 era em área de outra facção. “Aquela juventude estava condenada a não estudar. O que eles iam fazer? Voltar para o tráfico. Isso aconteceu em todas as grandes favelas do Ceará”, afirma.
Quebra de confiança
“Vocês vão fica aqui até quando?”, pergunta o adolescente a um PM que trabalha no contêiner instalado em alguns bairros periféricos dentro da política de polícia de aproximação adotado pelo governo desde o ano passado. “Quem do Comando [Comando Vermelho, facção que domina a região] mandou você aqui?”, retruca o PM. O garoto não era do crime. Ele queria saber de verdade se poderia contar com a polícia para protegê-lo dali em diante ou se, muito em breve, seria abandonado.
O diálogo aconteceu há alguns meses no Gereba e ilustra uma das dificuldade de se implementar o chamado policiamento comunitário e uma das razões do recorrente fracasso de estratégias como essas.
O pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência Luiz Fábio Paiva observa a necessidade de avaliar e atuar no território de maneira conjunta, cooperativa e multidisciplinar. “Você tem um grupo que faz ações sociais, por exemplo, no conjunto Bom Jardim fazendo um sarau com jovens. Aí um belo dia a polícia chega e acaba com a atividade que é do próprio governo. O sistema começa a entrar em colapso”, avalia o pesquisador.
Apesar das particularidades de cada território, a polícia de aproximação do Ceará tem semelhanças com o projeto da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Rio de Janeiro e pode fracassar, inclusive, por motivos muito semelhantes. O promotor criminal André Clark Cavalcante, que até o momento tem avaliado como positiva a iniciativa, atenta para a necessidade de que outras políticas públicas precisam vir junto com a polícia. “O grande equívoco das UPPs foi ficar só na parte policial. E não estou querendo comprar situações tão diferentes, não estou me propondo a avaliar o caso de lá, mas o que tem sido feito aqui é não parar apenas no policiamento”, defende. “É pacífico que só polícia não resolve. Para você pacificar uma área, tem que ter atuação do município, por exemplo. Iluminação pública reduz crime, limitação de horário para consumo de bebida alcoólica, tudo contribui”, diz.
Na gestão de Cid Gomes como governador do estado houve a Ronda do Quarteirão, que basicamente tinha por conceito a figura do policial estabelecer laços com a comunidade onde estivesse atuando, partindo para um caráter preventivo e onde o vínculo de confiança tinha que estar antes das ações repressivas. Não deu certo. “Uma das críticas que os policiais da ‘Ronda’ sofriam eram de ser bundões. Era de não resolver as coisas. Como eu aplico a lei num território atravessado por problemas sociais? Onde o PM não tem salvaguarda nenhuma, nem da civil nem do MP. Se ele for aplicar a lei, ele vai ser chamado de frouxo. Ou então ele começa a aderir a uma perspectiva muito comum na PM que ele tem que ir resolver e acabou. Ele começa a substituir o encaminhamento pra delegacia para uma situação em que ele vai dar um sacode no cara. Ele desenvolve uma certa perspectiva de justiça que não está dentro da legalidade, que é violadora”, explica Luiz Fábio.
Para o ativista social Dom Red, existe uma cultura nas forças de segurança e que se manifesta muito na periferia que é a ideia de que o sujeito “só vai ter respeito se chegar batendo, gritando. É o método policialesco, truculento da velha instituição polícia que acaba destruindo qualquer iniciativa que fuja disso”. Além disso, Dom Red, como homem, negro e periférico, sente o viés racista da PM. “Eu sei que sou alvo, que nós somos alvos, que eles podem me forjar. E a elite aplaude. Por causa da cultura do medo e do punitivismo penal. O nosso governador entrou no debate que a direita quer: mais pena, mais policiamento na rua”, critica o militante, que frisa o quanto o campo progressista abandonou o debate da segurança pública e deixou tudo para os extremistas da direita que chegaram ao poder justamente com essas bandeiras.
Colaboração: Maria Elisa Muntaner (análise de dados) e Antônio Junião (gráficos)
Matéria originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo
COM INFORMAÇÕES DO JORNAL EL PAÍS