'Cutucaram o vespeiro e viram que era pior do que se imaginava', diz especialista de segurança sobre tiroteio na Avenida Brasil
Três homens morreram e outras três pessoas foram baleadas durante ação da PM no Complexo de Israel, na Zona Norte, na manhã desta quinta-feira
Por Lucas Guimarães — Rio de Janeiro
25/10/2024 06h00 Atualizado há 21 minutos
Pessoas tentam se proteger na Avenida Brasil em meio a intenso tiroteio na Cidade Alta
Pessoas tentam se proteger na Avenida Brasil em meio a intenso tiroteio na Cidade Alta Reprodução
RESUMO
Três homens morreram, e outras três pessoas ficaram feridas durante um intenso tiroteio na manhã de quinta-feira no Complexo de Israel, na Zona Norte. O confronto entre criminosos e policiais interditou a principal via expressa da cidade, a Avenida Brasil. A porta-voz da Polícia Militar, tenente-coronel Claudia Moraes, afirmou, em entrevista coletiva da corporação, que a corporação não tinha encontrado este tipo de resistência enfrentado e as tropas recuaram. O especialista em segurança pública e ex-chefe do Estado-Maior da PM Robson Rodrigues avalia que a operação foi realizada de forma "precipitada".
Três pessoas morrem, e três ficam feridas durante tiroteio na Avenida Brasil em operação no Complexo de Israel
Confronto na Av. Brasil: 'PM não tinha dados de inteligência para essa reação', diz porta-voz da corporação sobre operação no Complexo de Israel
De acordo com Rodrigues, a ação da Polícia Militar de recuar mediante ao que foi encontrado no Complexo foi correta. Com as vítimas da incursão, o foco era evitar mais feridos e mortos:
— Dadas as circunstâncias, se você forçar ali, com a vulnerabilidade que enfrentaram, com o nível de letalidade na ação, o que iria acontecer seria muito pior. Se você coloca mais PM ali, causa mais tensão ainda. Cutucaram o vespeiro e viram que era pior do que se imaginava — afirmou.
No entanto, Rodrigues frisou que a ação da Polícia Militar ocorreu de forma "precipitada", já que a foi realizada com pouca investigação, segundo a porta-voz tenente-coronel Claudia Moraes. Em entrevista coletiva, ela afirmou que "os policiais encontraram algo que estava além do que normalmente encontrávamos nessa região".
— A gente não tinha dados de inteligência para essa reação — reconheceu a oficial.
Para Robson Rodrigues, o principal erro da ocorrência foi a ausência da presença da polícia judiciária, que seriam as polícias Civil e Federal. Ele explicou que, no artigo 144, fica explícito que a PM deve fazer apenas policiamento ostensivo fardado, sem ter a atribuição de realizar investigações. A responsabilidade de tamanha apuração seria outras instituições, que não estavam presentes na operação do Complexo de Israel.
— Quem tem que fazer investigação é a Polícia Civil e a Federal. A Militar não atua dessa forma, ela age a partir de flagrante. Acharam que hoje (na quinta-feira) seria de uma forma, a partir do flagrante, mas escalonou. Fica evidente que existe um erro crucial de união de forças. Do que adianta a gente ter esses três polos e eles não trabalharem juntos? Além disso, falta atuação da governança. Alguém que venha para gerir tudo isso. Sem isso, a PM sempre fica refém do pouco — detalhou ele.
Rodrigues avalia que o principal equívoco da operação foi a falta de integração entre as polícias. Ele destacou que a via expressa — Avenida Brasil — é uma das maiores vulnerabilidades de controle da Polícia Militar.
— Quem cabe cobrir as vias é a PM, que tem unidades especializadas para isso. Mas as demais devem apoiar. A Avenida Brasil é tanto de interesse estadual quanto federal, é rota para diversos lugares. É preciso evitar vaidades — finalizou ele.
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Hirata concorda. Segundo ele, "sob nenhum ângulo é possível considerar a ação policial de hoje como bem-sucedida".
— Esta ação policial expõe falhas no planejamento, porque as informações de inteligência não deram conta de qual teria sido a resistência a essa ação das polícias, e expõe falhas nas decisões no momento da operação porque acabou se expondo pessoas inocentes ao fogo cruzado de forma desnecessária. E o saldo operacional é baixíssimo em relação ao número de prisões e apreensões. De modo que temos que começar a repensar nesse modelo de atuação na área de segurança pública baseada em operações policiais — diz ele. — Que as operações policiais são necessárias na cidade do Rio de Janeiro, isso é inquestionável. Mas elas viraram rotina e acabaram se tornando a principal ação pública nessa área. No entanto, é necessário dizer e destacar que nos últimos anos tivemos avanços, sim, para tornar as operações policias mais seguras. Mas hoje os controles internos e externos das polícias têm que fazer uma avaliação com vistas a construção de operações policiais mais seguras e realizadas em momentos oportunos.
De acordo com Hirata, é preciso encontrar um outro caminho para o enfrentamento ao crime organizado:
— É nas ações policiais que se concentram os recursos financeiros, humanos e tecnológicos. E, historicamente, essas ações se mostraram ineficazes para o controle do crime comum e da criminalidade organizada. A criminalidade organizada se enfrenta com inteligência, planejamento e desenho de políticas públicas, que ocorre de forma inversamente proporcional ao número de operações policiais. A quantidade de operações policiais que temos hoje em dia denota a ausência de planejamento e de políticas públicas, que deveriam ser voltadas para o enfrentamento das bases econômicas, ou seja, o modelo de negócio desses grupos, que é muito diversificado, ações de cunho regulatório, por exemplo. Essas ações seriam muito menos letais do que as operações policiais e muito mais efetivas para o enfrentamento da lógica própria de controle territorial armado.
Entenda o caso
Em meio ao drama na Avenida Brasil, um dos mortos foi o passageiro Renato Oliveira, de 48 anos, que estava cochilando num ônibus da linha 493 (Central x Ponto Chic), da empresa Tinguá, quando foi atingido na cabeça. Ele chegou a ser encaminhado para o Bonsucesso, mas não resistiu aos ferimentos. A unidade atendeu outros dois homens, de 27 anos, que ficaram feridos. Um deles foi atingido no antebraço esquerdo e já teve alta. Outro foi baleado na região glútea, o projétil transfixou (atravessou e saiu). Ele segue internado, em observação.
Quem são as outras vítimas do tiroteio na Avenida Brasil?
Outras três pessoas foram levadas para o Hospital Municipal Dr. Moacyr Rodrigues do Carmo (HMMRC), em Duque de Caxias, segundo a Secretaria de Saúde daquele município. As vítimas do tiroteio são:
Paulo Roberto de Souza, de 60 anos, que chegou à unidade já morto, com um tiro na cabeça.
Geneilson Eustáquio Ribeiro, de 49 anos, também ferido na cabeça, foi entubado com um quadro gravíssimo. Ele foi transferido para o Hospital Municipalizado Adão Pereira Nunes (HMAPN), também em Duque de Caxias, e acabou morrendo.
Alayde dos Santos Mendes, de 24 anos, foi ferida na coxa direita e teve uma lesão superficial. A paciente, após avaliação médica, recebeu alta hospitalar com orientações, nesta manhã.
Ação contra roubos de cargas
Em nota, a Polícia Militar informou que equipes do 16º BPM (Olaria) estão realizando operação nas comunidades Cinco Bocas, Pica-Pau e Cidade Alta, todas do Complexo de Israel. Segundo o comando da unidade, o objetivo da ação é coibir roubo de veículos e cargas. A ação teve início ainda de madrugada. Por volta das 4h, um blindado do batalhão entrou na Cidade Alta, e teria sido encurralado.
Operação encerrada antes do tempo
A porta-voz da PM, tenente-coronel Cláudia Moraes, explicou que o tiroteio começou após traficantes reagirem à presença policial no Complexo de Israel. A operação acabou antes do previsto devido à forte resistência dos criminosos.
— As nossas tropas encontraram grande dificuldade em avançar no terreno. As regiões têm valas feitas pelos criminosos, o que atrapalha a entrada nas comunidades. A princípio, a informação que a gente tem é que as tropas devem se retirar, já que os criminosos estão com forte resistência — afirmou ao Bom Dia Rio.
Mais tarde, em uma coletiva de imprensa, a tenente-coronel chegou a afirmar que a polícia encontrou no complexo de favelas — dominado pelo bando do traficante Álvaro Malaquias, o Peixão — uma situação atípica.
Fonte o GLOBO