Policiais militares do Ceará reclamam de violência e assédio moral


 Cinco policiais militares cearenses se suicidaram em 2020. 

“Eu entrei saudável na polícia, mas hoje se eu não tomar um remédio de tarja preta eu não consigo dormir. Lá dentro é tapa na cara, mordida na cabeça, cuspida na cara… Até torturado eu cheguei a ser, morderam minhas partes íntimas.” Esse é o relato de Mário (nome fictício), policial militar cearense que terá sua identidade preservada, afastado das atividades nas ruas desde 2015 para tratar de problemas psicológicos.


Desde então, ele reclama da falta de apoio da corporação para continuar seu tratamento e diz ser perseguido por seus superiores até hoje. “Depois de mais de 20 anos de prestação de serviços à PM, eu tenho medo que uma viatura encoste aqui e me leve preso”, continua. Ele diz que desde que se afastou do órgão aguarda a visita de um oficial que acompanharia seu caso, mas nunca o recebeu.


A discussão sobre a saúde mental dos policiais militares foi reacendida após o óbito de Wesley Soares, no fim de março. Ele foi morto na Bahia por colegas de profissão após dar tiros de fuzil para o alto durante um surto psicótico, de acordo com a Secretária de Segurança Pública (SSP-BA). O POVO conversou com policiais e especialistas para entender como está a saúde mental desses profissionais no Ceará.

Presidente da Associação de Profissionais da Segurança (APS), o policial militar Cleyber Araújo reclama que o órgão não tem uma “cultura de humanidade”. Ele explica que a cobrança para que os agentes exerçam cidadania e direitos humanos durante seu trabalho é contrária ao clima de dentro dos quartéis, onde os policiais ainda enfrentam “muita humilhação, perseguição e assédio moral”.


“A gente é levado a um tipo de estresse de uma rotina que é muito brutal. Nossa sociedade ainda é muito violenta e o serviço que exercemos era para ter total atenção do Estado e de outras instituições para nos amparar, o que não acontece”, afirma Araújo, que também já precisou se afastar do trabalho para tratar de problemas psicológicos.


Morte de PM na Bahia e a saúde mental dos policiais

A morte do policial militar baiano Wesley Bernardo no fim de março gerou muita repercussão em todo o Brasil e abriu novamente o debate sobre a saúde mental dos agentes de segurança. No caso, Wesley se dirigiu ao Farol da Barra, um dos pontos turísticos mais conhecidos de Salvador, e começou a dar tiros de fuzil para cima.


Ele chegou a bradar palavras de ordem e pintou o rosto de verde e amarelo. "Venham testemunhar a honra ou desonra do policial militar da Bahia", disse em dado momento, registrado em vídeo. O fato chegou a mobilizar associações de policiais militares da Bahia a paralisar as atividades — o que não é permitido de acordo com a legislação.


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Para Cleyber Araújo, a morte do policial é um reflexo da alta pressão psicológica enfrentada pelos agentes de segurança sem o amparo da administração do órgão. “Nós não temos psicólogos suficientes para atender a demanda e também não há um psiquiatra vinculado ao órgão para fazer o atendimento”, ponderou.


De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 11 policiais se suicidaram em 2019 no Ceará, sendo sete PMs e quatro policiais civis. O número é ainda maior em relação ao ano anterior, quando foram registradas duas mortes por suicídio.


Durante o primeiro semestre de 2020, 10 policiais foram vítimas de mortes violentas no Estado. A estatística é a terceira maior do Brasil, atrás apenas de São Paulo e do Rio de Janeiro, que registraram 28 e 27 policiais mortos, respectivamente. Pernambuco também teve o mesmo número de óbitos que o Ceará. Em 2019, nenhum caso foi registrado, conforme a publicação.


Mário, policial citado no início desta matéria, cuja identidade será preservada, disse que se salvou de ter um fim semelhante ao agente baiano. Ele considera que o tratamento psicológico, ainda que tenha ocasionado a redução do seu salário, está fazendo com que ele se recupere dos traumas que sofreu durante os anos que esteve ativo nas ruas.


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“Apoio (da polícia) não tive nenhum. Se tivesse, teria uma cesta básica, consultas com psicólogo e psiquiatra… O serviço é estressante, estarrecedor e não tem apoio de ninguém. Tudo isso reflete na sua vida, mexe com o ser humano. Eu não sou um marginal, mas sou tratado como se fosse”, lamentou.


Antônio (nome fictício), outro policial que também não será identificado, pondera que o apoio psicológico oferecido pela corporação não consegue atingir os agentes que estão na rua diariamente. Ele avalia que seria essencial que houvesse uma busca ativa para identificar policiais que estão enfrentando problemas mentais. “Hoje, essa coordenadoria (que oferece auxílio psicológico) é como um pai ou mãe ausente. Você sabe que tem, mas não sente a presença, tampouco sente que pode confiar”, explica o homem.


“Existe uma espécie de sentimento de apreensão que você liga automaticamente quando entra de serviço, porque você não sabe o que vai acontecer na próxima esquina. Isso acontece diariamente e traz uma carga de ansiedade muito grande, é meio atordoante. É tanto que a maioria dos meus pesadelos remetem a uma situação de desorientação e atordoamento”, continuou o agente.


Realidade nacional

Em São Paulo, a Polícia Militar está desenvolvendo uma cartilha para que os agentes possam identificar colegas com necessidade de ajuda e possam auxiliá-los. A intenção é capacitar os policiais de todos os níveis para saber o que falar quando o parceiro tiver conversas com intenções suicidas. Entre 2015 e o ano passado, 137 policiais da ativa militares tiraram a própria vida em São Paulo. As informações foram divulgadas pela Folha de S. Paulo nessa segunda.


A psicóloga Rebeca Rangel, fundadora da Assessoria de Assistência Biopsicossocial (Abips) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), considera que a situação está melhorando nos últimos anos. Ela aponta que há uma preocupação maior do Estado em garantir bons equipamentos para os agentes e ofertar serviços de saúde mental, com atendimento de psicólogos, psiquiatras e fisioterapeutas.


Rangel reconhece, no entanto, que o déficit para esse tipo de acompanhamento é uma realidade nacional e destaca que as mudanças devem acontecer a partir de uma mudança de perspectiva de cima, por parte dos gestores da corporação. “Os profissionais precisam ser valorizados, se sentir valorizados. Acho que tem que abrir um lugar para o diálogo. Se o profissional está bem de saúde ele vai trabalhar melhor, vai produzir mais, e isso acontece em todos os ramos”, pondera.


Para a psicóloga, o problema de desvalorização dos policiais começa na sociedade civil. Ela pondera que a população só se lembra da PM quando coisas ruins acontecem e acaba não reconhecendo o trabalho executado pelos agentes diariamente. Um exemplo disso, defende, seria o atraso da vacinação dos profissionais da segurança pública contra a Covid-19.


Até esta terça-feira, 7, o Ceará e pelo menos outros quatro estados começaram a aplicar o imunizante em policiais. Desde a semana passada, o governador Camilo Santana (PT) vem se articulando para iniciar a vacinação no Estado. A ideia é vacinar os profissionais que estão atuando na linha de frente da pandemia, combatendo aglomerações e trabalhando em barreiras sanitárias, por exemplo.


Desmilitarização pode ser um caminho, indicam pesquisadores

A rigidez da hierarquia e disciplina características da cultura militar são fatores que interferem nas atividades e condições de trabalho do policial militar, conforme defende a pesquisadora e psicóloga Verlene Sousa em dissertação sobre o tema apresentada em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Universidade Federal do Ceará (UFC).


Ela considerou que a proibição de sindicalização e de greves contra condições de trabalho são fatores desfavoráveis ao policial. “Verifica-se que policiais militares possuem direitos e deveres semelhantes aos das forças armadas e diferentes dos demais servidores públicos”, explicou a pesquisadora na publicação.


O ex-sargento da PM Josué Pereira foi expulso da corporação após participar de movimento grevista por melhores condições de trabalho em 1997. “Na época, os praças (policiais com patentes mais baixas) não estavam aguentando a pressão dos coronéis e do Estado. O regime militar não abre alternativa, ou você obedece, ou é expulso da corporação”, enfatizou.


 


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Para o sargento, essa forma de relação trabalhista é uma maneira de retirar direitos dos agentes, que se veem obrigados a obedecer às condições impostas pelo regime para continuar dentro do órgão. "Existe a perseguição, se o policial não se enquadrar dentro daquele regime, ele é transferido para outra unidade, é repreendido”, disse.


Ele comentou ainda que a falta de transparência dos órgãos faz com que a população não tenha ciência do que acontece dentro da corporação. “Quantos (policiais) estão afastados para tratamento psicológico? Você não tem essa estatística porque o Estado esconde. Foi criada a Controladoria (Geral de Disciplina), mas funciona mais para punir as transgressões do que para acompanhar o que de fato acontece”, argumentou.


Conforme a psicóloga Rebeca Rangel, a desmilitarização não é algo que necessariamente precisa acontecer para que a situação da corporação melhore. Ela defende que a cultura militar também tem um lado positivo, no sentido de criar uma organização e de estabelecer normas, e não deve ser descartada. “A militarização foi um processo fundante da Polícia Militar no Brasil. Não sei se esse seria o caminho para a saúde mental dos policiais”, aponta.


O POVO questionou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), no último dia 2, sobre o número de policiais que estão afastados das ruas para acompanhamento psicológico, mas não teve resposta até a publicação desta matéria. A reportagem ainda questionou a pasta sobre os relatos recebidos pelos policiais, mas também não foi respondida.


Como buscar ajuda psicológica e prevenir o suicídio

É possível receber apoio emocional e prevenir o suicídio por meio do número 188, do Centro de Valorização da Vida (CVV), ou ainda via internet (www.cvv.org.br), por email, chat e Skype 24 horas por dia. Todos os canais são gratuitos e a comunicação acontece sob total sigilo.


FONTE: JORNAL O POVO

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