Era mais uma viagem para Palmas, Capital do nosso Tocantins, e naquele ônibus só havia desconhecidos, que, aos poucos, foram se tornando conhecidos. Era mais uma etapa do concurso do Curso de Formação de Soldados da PMTO, em 2004, estávamos indo a Palmas para a fase de Teste de Aptidão Física – TAF. Todos ansiosos para garantir um futuro melhor para nossas famílias. E nessa viagem, uma figura que conversava e sorria de tudo ao mesmo tempo: Solonaldo Rocha. Nome esquisito, porém, forte para ser um nome de guerra. E quando perguntei a origem dele, ele respondeu: Esperantina-TO (Bico do Papagaio). Eu nem fazia ideia onde ficava tal cidade, mas ele dizia que era uma pequena cidade do extremo Bico. Dizia também que queria mudar de vida, mudar de profissão, trabalhava com agropecuária, e a oportunidade de ser PMTO era uma das mais valiosas da vida. Qualquer um que perguntasse a ele se ele estava pronto para o TAF, ele respondia: só Deus tira isso de mim.
Alguns meses depois, lá estávamos nós dando início a uma longa jornada de curso. Era 02 de fevereiro de 2004, Araguaína-TO, em frente ao temido 2º BPM. Ali, em uma fila indiana entramos no batalhão referência da PMTO, onde fomos engolidos por um túnel humano. Militares, em posição de sentido e com continência, de um lado e de outro formavam um túnel que nos recepcionava para o início do CFSD naquela unidade. E mais uma vez, uma viagem de pessoas desconhecidas, iria nos tornar tão conhecidos com um grau de parentesco ora desconhecido por algumas pessoas: irmãos de fardas.
Foi assim que 80 alunos soldados viveram intensamente os 08 meses mais difíceis de suas vidas. Foi assim que tivemos a oportunidade de conhecer um irmão e tanto chamado Solonaldo. Era um xodó de uma turma. Era a figura carimbada de um curso. Falar em Solonaldo no CFSD de 2004, em Araguaína, é ressuscitar risos e grandes momentos de uma jornada inesquecível. A marca primeira dessa figura era um grande e aberto sorrisão, daqueles que o dente pivô balançava visivelmente entre os lábios de tão estrondoso que era. A outra grande marca era a capacidade física. Era algo invejável. Muita gente, no auge dos seus 20 aninhos, não conseguia obter o desempenho físico que nosso guerreiro no auge dos 30 anos obtinha com maestria. Mas nosso grande Solonaldo também tinha suas falhas. Mas o engraçado é que essas falhas mais nos faziam rir do que chorar ou se lamentar.
O esquecimento era uma das características cômicas do nosso guerreiro. E um belo dia, ele esqueceu de colocar o celular para despertar às 13h30 enquanto tirava um cochilo no alojamento da ASCAS dentro do batalhão. O resultado disso é que a turma A já estava em forma, e o nosso Xerife já havia apresentado o turno para o coordenador do curso. Foi quando lá se vem em disparada o então Aluno Soldado Solonaldo, que, um pouco desalinhado, se apresentou ao Oficial coordenador, que o fez pagar algumas flexões pelo atraso. Poucas vezes, durante o CFSD, vi o Solonaldo não sorrir de alguma coisa ou tirar onda pela facilidade como ele superava os exercícios. Mas naquele dia, ele deixou uma lágrima escapar. Somente naquele momento mesmo, pois meia hora depois daquilo, ele começou a sorrir de si mesmo e da própria situação.
Mas ainda na linha do esquecimento, o maior de todos foi o mais cômico. Solonaldo, em plena ação de jornada de CFSD, mais precisamente dentro do matagal, esqueceu o dente pivô que ele tinha na boca, e que ficou em algum lugar da área de mata. E lá se vão uns alunos procurar o dente do nosso guerreiro.
Ainda na jornada do CFSD, na atividade de patrulha rural, pequenos grupos faziam testes de chegar a um objetivo e neutralizar o inimigo, mas, para isso, deveriam se locomover numa área de mata fechada por meio de progressão ponto a ponto ou rastejo. E numa dessas, não é que o nosso grande guerreiro adormeceu, e a patrulha chegou no ponto final sem ele. Resultado disso foi que tivemos que voltar e resgatar o belo adormecido Solonaldo, que, ao final do curso em Araguaína, mudou o nome de guerra para ROCHA. Nós até brincávamos com ele, e dizíamos que mudou o nome de guerra, mas não a mocoroncagem.
Mas de morocorongo nosso irmão não tinha nada. Um ano depois, lá estava o Soldado Rocha galgando novos desafios na PMTO. O primeiro dele foi o Curso de GIRO. E daí em diante, o sangue operacional e grande capacidade física o impulsionaram para a força especializada da PMTO, e, após seis anos, nos reencontramos em Palmas. Eu já na condição de Cadete do CFO, e ele na elite do serviço operacional da PMTO (CIOE). Todas as vezes em que nos vimos não teve jeito. Sempre me recebeu com aquele sorrisão e aquela enorme consideração de irmão. Na primeira vez, ele me perguntou se eu já havia conhecido Esperantina, pois, após o CFSD, meu destino foi justamente o Bico do Papagaio.
Conheci sim o Bico, meu irmão, e nunca pensei que o Bico seria esse lugar tão aconchegante e de pessoas excepcionais, onde tanto o trabalho e a vida social marcam a minha vida. Assim, como você, constituí família nessa região. E da mesma forma como você sempre lutou, luto para que o meu trabalho dignifique a vida dessa família.
Infelizmente, na data do dia 03 de julho de 2016, 79 dos 80 alunos soldados, que ingressaram naquele túnel humano em Araguaína, sentiram uma dor jamais sentida ao longo de 12 anos de caserna. Perdemos um irmão, no auge de uma vida profissional de realizações. Um irmão que saiu do Bico para ganhar o Tocantins. Um ser humano como poucos, de um grau de humildade que erradia os que convivem com ele. Ah, se você pudesse atrasar aquela viagem de ontem em alguns minutos. Ah, se você pudesse esquecer algo em casa e tivesse que voltar para buscar, assim, evitaria ter que cruzar numa rodovia com um cidadão irresponsável que, numa ultrapassagem imprudente, colidiu um carro em sua moto. Talvez, não teríamos perdido esse sorriso tão precocemente.
Mas há um Deus sobre todos nós, que define dia, hora e lugar para voltarmos ao seio e proteção dele. Uma missão foi encerrada na Terra.
Agora, imagino Solonaldo chegando ao céu. Aí, São Pedro lá na porta diz: acho que você esqueceu algo lá na Terra. E o Solonaldo, meio que atrapalhado, vai dizer com sorriso nos lábios: não esqueci nada não, Senhor. Ou melhor, acho que sim. Mas foi de propósito. Deixei meu sorriso. Deixei minha força de vontade. Deixei meu exemplo para que todos aqueles que lembrem de mim saibam que é possível sonhar, é possível trabalhar com dignidade, é possível ser amigo, ser família. É possível sair de um pequeno povoado do Bico do Papagaio para vencer e para ter amigos, ter irmãos e fazer laços que dinheiro nenhum no mundo compra. Laços que nem a interrupção precoce de uma vida irá apagar.
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